Gratuidade de ensino e cobrança de mensalidade em curso de especialização
A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança por universidades públicas de mensalidade em cursos de especialização.
Com base nessa orientação, o Plenário, por maioria, deu provimento a recurso extraordinário para denegar segurança.
Preliminarmente, o Colegiado, também por maioria, indeferiu pedido de sustentação oral do advogado do “amicus curiae” da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG) já ter se exaurido a fase de sustentação oral na sessão anterior, e tendo ele se inscrito apenas na sessão subsequente. Vencidos, no ponto, os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, que deferiam o pleito, ao fundamento de que, se há inscrito terceiro, sem que ainda tivesse sido proferido qualquer voto, se deveria, em prestígio ao devido processo legal, viabilizar a sustentação.
Quanto ao mérito, inicialmente, o Colegiado observou que, a despeito da Súmula Vinculante 12 (1), alargar a sua aplicação para os cursos de extensão seria interpretação equivocada do verbete sumular.
Asseverou haver no texto constitucional uma diferenciação entre “ensino”, “pesquisa” e “extensão”, que formam tripé harmônico e essencial para a educação de qualidade. Nos termos do art. 206, IV, da Constituição Federal (CF), a gratuidade do ensino é um princípio aplicável a todos os estabelecimentos oficiais. Para tanto, conforme exige o art. 212, “caput”, da CF, um percentual da receita pública deve ser destinado à “manutenção e desenvolvimento do ensino”. O art. 213, § 2º, da CF autoriza, “argumentum a contrario”, a captação de recursos destinados à pesquisa e à extensão porque os recursos públicos, a que se refere o art. 212, “caput”, da CF, têm destinação precípua às escolas públicas. Já as atividades descritas no art. 213, § 2º, da CF não necessariamente contam com recursos públicos. Seria incorreto, porém, concluir que a Constituição não exige financiamento público para a pesquisa e extensão.
Explicou que a indissolubilidade entre “ensino, pesquisa e extensão”, princípio previsto no “caput” do art. 207 da CF, exige que o financiamento público não se destine exclusivamente ao ensino, visto que, para a manutenção e desenvolvimento do ensino, são necessários, nos termos do art. 207, pesquisa e extensão.
Entretanto, há um espaço de conformação no texto constitucional para a definição das atividades que integram a manutenção e o desenvolvimento do ensino. De fato, o regime constitucional de pós-graduação deve derivar das exigências constitucionais contidas no art. 207 da CF. Impossível afirmar, com base na leitura estrita da CF, que as atividades de pós-graduação são abrangidas pelo conceito de manutenção e desenvolvimento do ensino, parâmetro constitucional para a destinação, com exclusividade, dos recursos públicos. Por isso, para a solução do presente caso, é preciso examinar se a instituição de cursos de pós-graduação (especialização) implica, necessariamente, gratuidade.
O Colegiado frisou competir ao legislador a tarefa de disciplinar quais características determinado curso assumirá. Caso a atividade preponderante se refira à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, a gratuidade deverá ser observada, nos termos do art. 206, IV, da CF.
Para matéria relativa a ensino, pesquisa e extensão, a competência regulamentar é concorrente entre a União e os Estados-Membros (CF, art. 24, IX), mas também é afeta à autonomia universitária. Quanto a este último aspecto, a universidade pode contar, por expressa previsão constitucional (CF, art. 213, § 2º), com recursos de origem privada. Ademais, embora não disponham de competência para definir a origem dos recursos a serem utilizados para a manutenção e o desenvolvimento do ensino, as universidades podem definir quais são as atividades de pesquisa e extensão passíveis de realização em regime de colaboração com a sociedade civil. No exercício de sua competência para definir normas gerais (CF, art. 24, § 1º), a União editou a Lei 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Dessa lei é possível depreender que os cursos de pós-graduação se destinam à preparação para o exercício do magistério superior (arts. 64 e 66) e, por isso, são indispensáveis para a manutenção e o desenvolvimento das instituições de ensino (art. 55).
Porém, é preciso observar que apenas os cursos de pós-graduação que se destinam à manutenção e ao desenvolvimento do ensino são financiados pelo Poder Público. Novamente é a Lei 9.394/1996, em seus arts. 70 e 71, que fixa as regras para contabilizar essas despesas.
Segundo o Tribunal, não se deve, evidentemente, ler a Constituição com fundamento na lei, mas sua referência exemplifica o fato de que ao legislador é possível descrever as atividades que, por não se relacionarem com a manutenção e o desenvolvimento do ensino, não dependem de recursos exclusivamente públicos. É lícito, dessa forma, às universidades perceber remuneração pelo seu desempenho.
Além disso, a elaboração da lei não retira das universidades a competência para, por meio de sua autonomia, desenvolver outras atividades voltadas à comunidade que não se relacionem precisamente com a exigência constitucional da manutenção e do desenvolvimento do ensino. Essa observação vai ao encontro do próprio texto constitucional, ou seja, não há, na previsão de autonomia das universidades (CF, art. 207), remissão à regulamentação por lei, diversamente do que ocorre com as regras sobre a carreira dos professores (CF, art. 206, V), com a forma de gestão democrática (CF, art. 206, VI) e com a contratação de professores estrangeiros (CF, art. 207, § 1º).
Há, aqui, potencialmente, um choque entre as competências legais do Poder Legislativo e normativas das universidades, ou do órgão encarregado de sua organização (CF, art. 211, § 1º). Esse conflito tem, em tese, assento constitucional e não legal. No caso, contudo, não há conflito a exigir a intervenção por parte do Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto a CF quanto a lei dão margem ao juízo de conformação a ser realizado pelas universidades para definir se determinado curso de especialização destina-se à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, hipótese em que, por expressa previsão constitucional, os recursos para seu financiamento deverão ser exclusivamente públicos. Nesse sentido, o art. 71 da Lei 9.394/1996 exclui das despesas de manutenção e desenvolvimento a formação de quadros especiais para a administração, caso em que, desde que restrita aos cursos de especialização, não haveria impedimento para as universidades, por analogia, disciplinarem outros cursos cuja cobrança de mensalidade fosse possível.
O Colegiado afirmou ser evidente que as universidades não são completamente livres para definir suas atividades. O desempenho precípuo de suas funções exige que, no mínimo, haja completa realização daquelas que se relacionem com a manutenção e o desenvolvimento do ensino. Nada impede que, para além dessas atividades, a universidade possa definir outros cursos para a comunidade, como cursos de extensão, que, embora se relacionem ao ensino, guardam independência quanto a ele.
Afastou o argumento de que, por ostentarem natureza autárquica ou fundacional, as universidades somente poderiam adotar o regime tributário para a obtenção de receitas, a implicar que o serviço desempenhado passasse a ser remunerado por taxa. Isso porque, em primeiro lugar, a adoção do regime de direito público, previsto no art. 37 da CF, não impõe, necessariamente, que a obtenção de receita seja exclusivamente pela via tributária. Ademais, o princípio da gratuidade veda, precisamente, a cobrança de prestação compulsória (CF, art. 205), como ocorre nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino. Além disso, por serem as atividades extraordinárias desempenhadas de modo voluntário pelas universidades, pode ser estabelecida uma tarifa como contraprestação.
Relembrou que, no julgamento da ADI 800/RS (DJE de 27.6.2014), se reconheceu que o traço característico de uma prestação estatal remunerada por taxa é a compulsoriedade, prevista no art. 3º do Código Tributário Nacional (CTN). Na mesma direção aponta ainda o Enunciado 545 da Súmula desta Corte (2). Essa diferenciação é fundamental para também estender às atribuições desempenhadas pelas universidades o entendimento sumulado pelo STF. Dessa forma, por não ser taxa a cobrança de mensalidade para os cursos não relacionados com a manutenção e o desenvolvimento do ensino, não está sujeita à legalidade estrita. Noutras palavras, podem as universidades regulamentar a forma de remuneração do serviço desempenhado.
Ainda no que tange às limitações impostas às universidades, é mister registrar que os professores são servidores públicos e, como tal, destinam-se ao desempenho das tarefas indicadas nos seus cargos. Não podem, consequentemente, eximir-se de suas obrigações ordinárias para desempenhar aquelas que, por conveniência, a universidade decidiu oferecer ao público, mediante pagamento.
Além disso, embora tenham autonomia para definir as atividades ofertadas ao público, as universidades devem ter em conta que prestam serviço público e, portanto, devem garantir os direitos dos usuários (CF, art. 175, II), observar a modicidade tarifária (CF, art. 175, III) e manter serviço de qualidade (CF, art. 206, VII), atendidas as exigências do órgão coordenador da educação (CF, art. 211, § 1º). Finalmente, a regulamentação dessas atividades deve ainda observar o princípio da gestão democrática do ensino (CF, art. 206, VI).
Em suma, o Plenário concluiu ser preciso reconhecer que nem todas as atividades potencialmente desempenhadas pelas universidades se referem exclusivamente ao ensino. A função desempenhada por elas é muito mais ampla do que as formas pelas quais elas obtêm financiamento. Assim, o princípio da gratuidade não as obriga a perceber exclusivamente recursos públicos para atender sua missão institucional. Ele exige, porém, que, para todas as tarefas necessárias à plena inclusão social, missão do direito à educação, haja recursos públicos disponíveis para os estabelecimentos oficiais. O termo utilizado pela CF é que essas são as tarefas de manutenção e desenvolvimento do ensino. Consequentemente, são a elas que se estende o princípio da gratuidade. Nada obstante, é possível às universidades, no âmbito de sua autonomia didático-científica, regulamentar, em harmonia com a legislação, as atividades destinadas preponderantemente à extensão universitária, sendo-lhes, nessa condição, possível a instituição de tarifa.
Vencido o ministro Marco Aurélio, que negava provimento ao recurso. Considerava que o inciso IV do art. 206 da CF prevê um princípio inafastável que garantiria a gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, sem distinção, se de ensino básico, fundamental, superior, graduação ou pós-graduação. Além disso, o inciso I do art. 206 da CF asseguraria a igualdade de condições de acesso e permanência na escola. Não caberia ao intérprete, portanto, fazer distinção onde o texto constitucional não o fez, sob pena de gerar privilégio apenas aos que têm condições de arcar com os valores cobrados para os cursos. Em suma, as universidades públicas deveriam prestar o serviço educacional com base nas receitas previstas de forma exaustiva no texto constitucional (CF, art. 212) e, por serem públicas, haveriam de viabilizar, sem necessidade de qualquer pagamento, o acesso dos cidadãos em geral.
(1) Súmula Vinculante 12: “A cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal”.
(2) Enunciado 545 da Súmula do STF: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”.
RE 597854/GO, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 26.4.2017. (RE-597854)
Parte 1:
Parte 2:
Parte 3:
Decisão publicada no Informativo 862 do STF - 2017
O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, e a ele compete, precipuamente, a guarda da Constituição, conforme definido no art. 102 da Constituição da República. É composto por onze Ministros, todos brasileiros natos (art. 12, § 3º, inc. IV, da CF/1988), escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101 da CF/1988), e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (art. 101, parágrafo único, da CF/1988). Entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a arguição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STF - Supremo Tribunal Federal. Gratuidade de ensino e cobrança de mensalidade em curso de especialização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 maio 2017, 09:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Informativos Temáticos/50094/gratuidade-de-ensino-e-cobrana-de-mensalidade-em-curso-de-especializao. Acesso em: 23 dez 2024.
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